Sapos

Postado por Simon Valadarez | Marcadores: , , , , , , , , , | Posted On quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007 at 15:24

Tenho medo de sapo e não sei ao certo desde quando. Mas hoje me lembrei das tardes de verão da minha infância quando nas férias a os moleques se reuniam para lavar a piscina lá em casa. Lavávamos os azulejos um por um com sabão enquanto inventávamos pretexto pra escorregões, muitas derrapadas e empurra-empurra no azulejo ensaboado. Entre a faxina e a brincadeira resultava um saldo maior de joelhos machucados, hematomas e galos depois dos tombos.
Éramos todos crianças e enquanto alguns amarravam bombinhas em rabo de gato e jogavam sal nos sapos, eu odiava os da minha piscina, mas era incapaz de fazer qualquer maldade com eles mais por medo, que depois de grande resolvi chamar orgulhosamente de nojo, do que por misericórdia daqueles anfíbios esquisitos. Quase sempre, depois de diminuir o nível da água, tínhamos que nos livrar de alguns sapos intrusos que não perdiam a chance de um mergulho na piscina limpa mais perto do brejo de onde eles vinham e viviam a três quadras dali. Numa daquelas tardes, tentando tirar um desses intrusos gosmentos da minha piscina, deixei a tábua cair no pé do sapo. Até aquele dia eu nunca tinha ouvido um bicho daqueles coaxar tão parecido com um grito de dor de gente. Juro que o sapo chorou. Quando a gente é criança, se acredita que até cachorro sorri, sapo então pode chorar.
Crescemos. Mudamos. Daqui de cima do apartamento, a piscina do condomínio está à distância de onze andares lá embaixo, no térreo. Quase ninguém a usa. Os sapos também não, presumo. Há muito tempo não os vejo. Construíram uma marginal em cima do brejo e a brincadeira de lavar piscinas virou profissão. Outro dia vi um ex-vizinho assíduo participante dos tempos da nossa farra de sabão passando o rodo do filtro aspirador nas piscinas do lado de dentro da nossa vizinhança. Sem sabão, sem sapo, sem festa. Falta dinheiro, Falta tempo, falta privacidade, falta segurança, falta gente e sapos de verdade aqui do lado de dentro. E aí fora? Onde estão as crianças?
No noticiário dezenas delas e um menino em particular morto numa história de terror e banditismo selvagem chocam com a resposta crua e o sentimento da ausência de tudo o que um dia parece ter existido sem esforço, recuando para dar lugar a um quadro de violência que avança nos trilhos do medo, com passos impunes. Cedo ou tarde, todos nós infelizmente sabemos onde ela está e que cara ela tem - a violência vil dos bandidos e terroristas que atacam dos covis os lares de gente de bem onde não existe mais segurança. Daqui do laod de dentro humanos atônitos, esmagados pelas pancadas de crimes cada vez mais brutais, engolem o grito do medo. E por todos os lados o que falta já deixou de ser carência para ser terror atemporal numa sensação prolongada e constante em que parece prevalecer tudo o que é amoral e bárbaro enquanto padece o que é bom e a esperança de civilização e civilidade diante dos nossos olhos.
Páro e fico pensando como é não poder mais viver sem ao menos saber a razão por que se morre como morreu João Hélio, o menino que foi arrastado sete quilômetros nas ruas do Rio de Janeiro por bandidos num carro roubado. Por que se morre? Por que se mata assim? Ou ambos os porquês? Certamente muitos mais porquês!João Hélio foi mais uma vítima de mais um crime repulsivo. Um crime que revolta pelas circunstâncias. Uma vítima que comove ao fazer refletir como poderiam ter vivido crianças que, como ele, deveriam crescer nas cidades, nas famílias, nas escolas, nos parques, nos passeios, tendo o direito pleno de serem crianças e terem uma família, educação, sonhos e condições de ser adultos normais para fazerem a diferença ou não num mundo de expectativas relativamente normais. Direitos que foram privados pela mão de assassinos ou que se privam mais ainda de uma parcela viva e pobre excluída de condições mínimas de sobrevivência, mas que, graças a Deus, nem por isso em sua totalidade decidiu justificar o crime como via de escape para oficializar a marginalidade nos desvios de conduta.
No meio de tudo isso voltei aos dias em que os meninos da rua brincavam de lavar a piscina. Alguns tinham medo de sapo como eu. Outros espancavam gatos. Mas todos queriam lavar a piscina. É, crescemos sim junto com tudo de bom e de ruim que pudemos trazer para o nosso mundo de hoje. Mas se todos os meninos da piscina puderem perceber que as brincadeiras de criança, mais sádicas ou menos maldosas, não são mais duras e traumatizantes do que o grito da dor de gente, então todos concordarão que ainda hoje, mais do que antes, nossa piscina precisa de limpeza pesada. Antes mesmo de entendermos o que viramos, teremos que tomar a decisão – ou lavamos nossas mãos e a consciência escondendo os sapos na água podre ou reformamos nosso mundo e ajustamos nossa atitude aprendendo que humanos são humanos, não são cachorros, nem gatos, nem sapos.

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